A Casa da Música encomenda arranjos de flores desde 2009 a uma empresa do Porto chamada Casa Florida. Quem dá a cara por esta empresa é Vanessa Garcia-Agulló, que já afirmou, em entrevista, que “tem uma avença da Casa da Música”.
Até aqui, parece tudo bem. Falta o resto da história.
PROBLEMA 1: Os custos com arranjos florais atingem valores astronómicos, podendo chegar a 10.000 € ou mesmo 14.000 € para um único concerto.
PROBLEMA 2: A Casa da Música não respeita a legislação de contratação pública nestes serviços, que obriga à publicação, no portal Base, dos ajustes directos relativos a todas as despesas acima dos 5.000 €.
PROBLEMA 3: A empresária Vanessa Garcia-Agulló, dona da Casa Florida, é casada com Fernando da Cunha Guedes, o Presidente da Sogrape Vinhos, uma das empresas fundadoras e mecenas da Casa da Música. Fernando da Cunha Guedes não é apenas o marido da empresária: o próprio exerce o cargo de gerente da Casa Florida desde 20151. Mas o conflito de interesses não fica por aqui: Fernando da Cunha Guedes é o actual vice-presidente do Conselho de Fundadores da Casa da Música.
PROBLEMA 4: Mesmo que fosse legal a preferência por contratação de serviços a empresas ligadas aos mecenas (ver Legislação), neste caso o casal Sogrape/Casa Florida fica a ganhar, já que são mais os custos com flores inflacionadas do que a receita da Casa da Música por via do mecenato da Sogrape (que inclui insólitas contribuições em espécie, materializadas em garrafas de vinho).
Toma lá (pouco), dá cá (muito)
Depois da sua participação no capital fundacional da Casa da Música, em 2006, a Sogrape Vinhos financiou a actividade da Fundação com os seguintes valores:
- 2015: 2.500 € (patrocínio)2
- 2018: 21.483 € (mecenato)3
- 2019: 24.391 € (mecenato)4
- 2020: 11.555 € (mecenato)5
- 2021: 14.981 € (mecenato)6
Por sua vez, as despesas da Fundação com a florista Casa Florida, entre 2009 e 2020, foram as seguintes (valores sem IVA):
- 2009: 10.939,00 € 7
- 2010: 26.099,30 €
- 2011: 10.921,50 €
- 2012: 7.960,00 €
- 2013: 4.450,50 €
- 2014: 7.208,00 €
- 2015: 10.934,00 €
- 2016: 12.801,26 €
- 2017: 9.652,00 €
- 2018: 32.444,11 €
- 2019: 28.262,53 €
- 2020: 27.416,00 €
Estes valores estão documentados na tabela aqui disponibilizada, com links para cada uma das facturas deste período. Permitem perceber como a Fundação passou a gastar consideravelmente mais dinheiro na Casa Florida a partir do ano em que a Sogrape Vinhos adquiriu o estatuto de mecenas (2018) e passou a contribuir com valores um pouco mais altos. Com esta troca de benefícios e a venda de flores a preços exorbitantes, o casal Sogrape/Casa Florida pôde recuperar integralmente os valores entregues à Casa da Música, obter o respectivo benefício fiscal e ainda fazer algum lucro. Desde 2009, a Casa Florida facturou cerca de 200 mil euros à Casa da Música.
Pandemia não abrandou a orgia floral
Entre 2019 e 2020 houve uma grande quebra de actividade: 2019 foi o último ano normal, em 2020 começava a pandemia. Os eventos realizados na Casa da Música diminuíram 52%; o número de espectadores baixou 70 a 76%.8 Mas as despesas em flores encomendadas à empresa Casa Florida, gerida pelo actual vice-presidente do Conselho de Fundadores da Casa da Música, baixaram apenas 3%. O negócio continuou a florescer.
14 mil euros para um único concerto
Em Janeiro de 2020, a Casa da Música chegou a gastar 14.194 € (+IVA) em arranjos de flores para um único concerto – o concerto de Abertura Oficial do País Tema. Um gasto muitíssimo acima daquele que se fez para o mesmo tipo de concerto nas várias temporadas anteriores, em Janeiro de cada ano, junto da empresa Casa Florida. A corrida começou nos 693 € e disparou exponencialmente ao longo dos anos (valores sem IVA):
- 2013, abertura Ano Itália: 693 €
- 2014, abertura Ano Oriente: 1.266 €
- 2015, abertura Ano Alemanha: 3.440 €
- 2016, abertura Ano Rússia: 3.330 €
- 2017, abertura Ano Britânico: 3.200 €
- 2018, abertura Ano Áustria: 3.350 €
- 2019, abertura Ano Novo Mundo: 10.000 €
- 2020, abertura Ano França: 14.194 €
- 2021, abertura Ano Itália (concerto cancelado): 6.297 €
Estes números (que se encontram documentados na tabela já mencionada com links para todas as facturas) mostram que em 2019 e 2020 a despesa foi muito superior à de anos anteriores para o mesmo serviço: 10.000 € e 14.194 € em arranjos de flores para um único concerto.
Dividir para disfarçar
Os gastos avultados em flores foram sempre disfarçados de forma ilegal, para fugir à obrigação de os comunicar no portal Base (contratação pública). As despesas acima de 5.000 € foram invariavelmente divididas em várias facturas. Este procedimento viola o Código dos Contratos Públicos, que é claríssimo nesse aspecto:
“O valor do contrato não pode ser fraccionado com o intuito de o excluir do cumprimento de quaisquer exigências legais.”
Código dos Contratos Públicos, artigo 17.º
Esse estratagema foi usado nos dois exemplos acima – facturas separadas (com números seguidos), como se se tratasse de diferentes serviços. Foram emitidas três facturas para um total de 10.000 € gastos no concerto de abertura do Ano Novo Mundo, em Janeiro de 2019:
E foram emitidas quatro diferentes facturas para os 14.194 € gastos no concerto de abertura do Ano França, em Janeiro de 2020.
O mesmo aconteceu já em 2021, com a pandemia a não impedir o gasto de 6.200 € na decoração do concerto de abertura do Ano Itália – que acabou por ser cancelado.
Este mesmo fraccionamento ocorre num serviço facturado em Julho de 2018, com o valor de 8.452,02 €. O caricato, neste caso, é que a empresa enviou uma factura com o valor total, que foi devolvida pelos serviços financeiros da Casa da Música com a simples indicação de que “a factura está incorrecta”, sem mais explicações.
A mensagem surtiu efeito, porque uma semana depois a empresa enviou três facturas de valores inferiores a 5.000 €, totalizando os mesmos 8.452,02 €.
As despesas astronómicas em arranjos de flores acontecem também em concertos de Natal. Em Dezembro de 2020, a Casa da Música gastou 5.482 € na florista para a decoração de Natal. Esse valor foi ilegalmente dividido por duas facturas, ambas com a mesma descrição: “Arranjos Decoração Natal 2020”.
Departamento de Marketing, Comunicação e Arranjos Florais
A maior parte das compras feitas à Casa Florida são da responsabilidade do Departamento de Marketing e Comunicação da Casa da Música, nomeadamente as despesas mais avultadas. Num período inicial desta relação comercial, várias facturas eram dirigidas directamente à Coordenadora de Marketing e Comunicação, Gilda Veloso.
A responsabilidade do Departamento de Marketing e Comunicação pelos gastos mais altos, nos anos recentes, comprova-se pelos códigos de cabimento (códigos internos da Casa da Música) inscritos em cada uma das facturas, que permitem identificar a pessoa responsável pela sua emissão através das iniciais do nome. Invariavelmente, trata-se de um gestor directamente dependente da Coordenadora de Marketing e Comunicação, Gilda Veloso.
Antes das alterações de organograma concretizadas pelo actual Conselho de Administração (eleito em 2021 e presidido por Rui Amorim de Sousa), este departamento esteve integrado na Direcção Artística da Casa da Música (sob a chefia de António Jorge Pacheco) durante nove anos, entre Março de 2013 e Fevereiro de 2022. A partir dessa data, o Conselho de Administração não só promoveu Gilda Veloso a Directora de Marketing e Comunicação, como autonomizou o departamento, que passou a depender directamente da Administradora-Delegada.
Conclusão
Precisamente para evitar conflitos de interesses entre empresas privadas e instituições financiadas pelos contribuintes, o Código dos Contratos Públicos obriga à transparência, através da publicação no portal Base, dos procedimentos de ajuste directo para aquisição de serviços entre 5.000 € e 20.000 €; consulta prévia para serviços entre 20.000 € e 75.000 €; e concurso público para valores iguais ou superiores a 75.000 € (valores sem IVA). A Fundação Casa da Música está obrigada ao cumprimento deste Código (ver Legislação).
A contratação de serviços à empresa Casa Florida exige da Fundação Casa da Música o cumprimento dos procedimentos impostos pelo Código dos Contratos Públicos, particularmente quando os serviços ultrapassam isoladamente o valor de 5.000 €. Nestes casos, o ajuste directo tem de ser publicado no portal Base, o que não aconteceu. Quanto às despesas anuais no seu conjunto, no âmbito da avença, obrigavam a que esta relação negocial e os valores previstos a facturar pela Casa Florida fossem publicados no dito portal. Esta falta de transparência atinge uma gravidade maior nos anos de 2018 a 2020: o volume de negócios ultrapassou os 20.000 €, pelo que deveria ter havido um procedimento de consulta prévia a três fornecedores, pelo menos.
Não existe nenhum contrato de ajuste directo ou consulta prévia com esta empresa registado no portal da contratação pública. Não existe nenhum contrato público de qualquer tipo entre a Casa da Música e a Casa Florida. Uma falta de transparência conveniente, para que fique na sombra o benefício ilegal a uma empresa fundadora e mecenas da Casa da Música, a Sogrape Vinhos.
PRÓXIMA FUGA
2: Santa Allianz
Fontes
(1) O comprovativo desta informação, extraído do Portal da Justiça, pode ser consultado aqui.
(2) Relatório de Actividades e Contas 2015, páginas 133 e 135.
(3) Relatório de Actividades e Contas 2018, página 196.
(4) Relatório de Actividades e Contas 2019, página 213.
(5) Relatório de Actividades e Contas 2020, página 188.
(6) Relatório de Actividades e Contas 2021, página 202.
(7) Total entre Abril e Dezembro de 2009; não foi possível obter as facturas do primeiro trimestre desse ano.
(8) Relatório de Actividades e Contas 2020, página 14.