3. A SONAE e a Casa da Música ao retalho

Sem procedimentos transparentes de contratação pública1, obrigatórios por lei, a Casa da Música entrega 100.000 € por ano ao Solinca Porto Palácio Hotel, paga comissões sobre todas as apólices de seguros à MDS Mediador de Seguros e mantém contratos de comunicações que valem cerca de 25.000 € anuais com a NOS Comunicações. Todas estas empresas pertencem ao universo SONAE (mecenas da Casa da Música) e as duas primeiras são, elas próprias, mecenas da Casa da Música. Os valores com que contribuem, além dos benefícios fiscais associados, dão-lhes acesso a relações comerciais privilegiadas com a Fundação Casa da Música, o que é também ilegal.

Nesta página revela-se também uma situação de favorecimento à empresa Sonae Sierra, que encomendou à Fundação um evento privado mas pagou um valor insuficiente para a sua realização. Um caso insólito de um patrocínio que causa prejuízo à entidade patrocinada – a Casa da Música.

Homens de confiança

Nos primeiros anos desde a criação da Fundação Casa da Música, em 2006, a SONAE foi um dos seus principais mecenas e a sua posição permitia-lhe colocar várias pessoas de confiança nos principais cargos de decisão da Fundação. Nuno Azevedo, filho de Belmiro de Azevedo, foi Administrador-Delegado da Fundação até 2012. O seu concunhado, Paulo Sarmento e Cunha, ingressou logo de seguida como Director Administrativo e Financeiro e tornou-se mais tarde Director Geral. O Presidente do Conselho de Administração da Fundação, entre 2006 e 2015, era José Manuel Dias da Fonseca, que é também CEO do Grupo MDS (mediador de seguros do Grupo SONAE). Quando este saiu, entrou outro homem da SONAE, António Lobo Xavier, que se manteve no Conselho de Administração da Casa da Música até 2021. Lobo Xavier era então um dos três administradores executivos da Sonaecom, um cargo bem remunerado que exerceu entre 2010 e 2019.

Mecenato em fuga

A contribuição da mecenas SONAE para a Fundação Casa da Música tem caído ano após ano, e o mesmo acontece com os donativos anuais de duas das suas empresas satélite, o Solinca Porto Palácio Hotel e a MDS: um total de 610.000 € no ano de 2008, que em 2021 se reduzia a apenas 110.000 €.2 O gráfico seguinte ilustra essa evolução negativa.

Os valores doados pelos mecenas não podem, legalmente, servir para justificar o maior ou menor volume de negócios com estas empresas, já que o Estatuto do Mecenato proíbe contrapartidas que configurem obrigações de carácter pecuniário ou comercial aos mecenas. Portanto, a Fundação Casa da Música não poderia beneficiar comercialmente as empresas que fazem donativos e os declaram como apoio mecenático. Não é o que tem acontecido ao longo dos anos, sendo interessante, aliás, verificar que, no que respeita à SONAE e às suas empresas participadas, a acentuada diminuição dos valores doados não se reflecte na diminuição dos negócios destas com a Fundação.

Solinca Porto Palácio Hotel

A Fundação Casa da Música escolhe para alojamento preferencial dos artistas o hotel de 5 estrelas Porto Palácio (Solinca PPH), propriedade da SONAE, onde gasta cerca de 100.000 € por ano, sem nunca ter feito um concurso aberto a outros hotéis (que seria obrigatório a partir dos 75 mil euros) nem qualquer outro procedimento de contratação pública aplicável a valores mais baixos1. O número elevado de facturas (uma média de 175 por ano entre 2017 e 2020) é um sinal claro desse acordo comercial, que aliás é mencionado em, pelo menos, dois documentos que acompanham determinadas facturas.

Através da tabela aqui disponibilizada é possível verificar os dados e visualizar todas as facturas de alojamento no hotel Porto Palácio entre 2017 e 2020 (período usado aqui como amostra de uma relação comercial bastante mais longa). Os gastos noutros hotéis são residuais – atingindo uma fracção muito pequena dos gastos no Porto Palácio. Verifica-se que as despesas anuais feitas pela Fundação Casa da Música foram as seguintes (IVA incluído – 6% no alojamento; 0% na taxa turística):

  • 2017: 116.987 €
  • 2018: 68.272 €
  • 2019: 116.116 €
  • 2020: 82.443 €

A pandemia causou uma redução intensa da actividade da Casa da Música: menos 52% de eventos e menos 70 a 76% de público em 20203. No entanto, a despesa em alojamento no hotel Porto Palácio baixou apenas 30% – foi mesmo superior à despesa feita em 2018, como os números apurados demonstram.

NOS Comunicações

Em Fevereiro de 2008, toda a rede de comunicações móveis e fixas e foi transferida da TMN para a Sonaecom (Optimus, actual NOS), uma empresa do Grupo SONAE.

O Código dos Contratos Públicos (Decreto-Lei n.º 18/2008) não estava ainda em vigor nesta data, mas sim o Decreto-Lei 59/99. Este, apesar de semelhante, não exigia a publicação de contratos de valor inferior a 250.000 €. A Optimus foi, portanto, a vencedora de um concurso ainda não sujeito a procedimentos transparentes, realizado a tempo de não ser abrangido pela nova legislação.

A comunicação interna acima diz explicitamente que a contratação tinha a validade de dois anos. Não passaram dois, mas sim três anos, até que a Fundação Casa da Música realizou contratação pública por ajuste directo, devidamente publicada no portal Base, para “Aquisição do Serviço de Comunicações Móveis e Fixas” pelo valor de 46.741,48 €. O fornecedor manteve-se: a Sonaecom. Duração do contrato: 730 dias, entre Fevereiro de 2011 e Janeiro de 2013. Passou esta data e passaram os onze anos seguintes sem que a Fundação tenha publicado qualquer outro contrato para este serviço. Beneficiando ilegalmente uma empresa participada da SONAE (infracção ao Estatuto do Mecenato), a Fundação Casa da Música não cumpre a obrigação de contratação pública do serviço de comunicações fixas e móveis (infracção ao Código dos Contratos Públicos).

Para relembrar, um dos três administradores executivos da Sonaecom, entre 2010 e 2019, era António Lobo Xavier – também membro do Conselho de Administração da Casa da Música entre 2015 e 2021.

Sonae Sierra

O Relatório de Contas de 2018 menciona o patrocínio da Sonae Sierra no valor de 6.000 €, para um concerto no NorteShopping (uma actividade extra-Plano de Actividades, mesmo porque não faz parte dos fins da Fundação a promoção de concertos para dinamização de negócios de espaços comerciais). Por esse mesmo concerto, conforme factura correspondente, a Casa da Música pagou à Banda Sinfónica Portuguesa a quantia de 8.000 €. Ou seja, o valor pago pela Sonae Sierra pelo serviço não cobriu a despesa desse mesmo serviço. Mais uma vez, isto pode ser lido como um favor feito à SONAE, empresa detentora de 80% da Sonae Sierra, em troca do seu mecenato. Ou simplesmente como má gestão.

MDS Mediador de Seguros

A Fundação Casa da Música mantém ainda uma relação comercial com a corretora de seguros MDS, uma empresa detida em 50% pela SONAE (até Dezembro de 2021) e liderada por José Manuel Dias da Fonseca (que foi Presidente do Conselho de Administração da Fundação Casa da Música entre 2006 e 2015). Todos os seguros são contratados através deste mediador, como se comprova com a totalidade das facturas que se encontram na secção Partituras. Desconhece-se o valor deste negócio em específico mas, face às quantias totais despendidas com seguros, seria de estranhar que os valores das comissões não obrigassem a um procedimento de contratação pública.

Acresce que a MDS actua como corretora de seguros, sendo por isso obrigada pelo Decreto-Lei n.º 144/2006 a uma “análise imparcial de um número suficiente de contratos de seguro disponíveis no mercado”. Por sinal, nos negócios de maior valor, pelo menos desde 2015, essa análise resulta sempre na escolha de empresas que têm uma relação de mecenato com a Fundação Casa da Música, como se demonstra na Fuga 2.

Outsourcing supérfluo, menos 40 mil nos cofres

Para a realização de uma digressão de oito concertos chamada “Orquestras no Património”, em 2019 (ver Fuga 4), a Fundação Casa da Música encomendou “Serviços de Assessoria Especializada para o Desenvolvimento da Estratégia de Comunicação”, com um custo de 40.000 € (+IVA)4, quando na sua estrutura interna contava já, então, com uma equipa completa de profissionais de comunicação, entre os quais quatro designers. Um gasto desnecessário cujo resultado poderia ter sido produzido internamente e que revela mais um rol de interessantes coincidências: a empresa prestadora deste serviço foi a Havas Design Portugal que, assim como a agência de publicidade Fuel, pertence ao grupo Havas; este tem entre os seus principais clientes várias empresas do grupo SONAE e a Sogrape (veja-se em fuel.pt). Acresce que um dos membros da gerência destas empresas (João Miguel Bragança Simões de Barros) tem laços familiares com uma das administradoras executivas da SONAE (Isabel Sofia Bragança Simões de Barros).

PRÓXIMA FUGA
4: Banco BPI, publicidade com benefícios fiscais

Fontes
(1) Contratos públicos da Fundação Casa da Música disponíveis em https://www.base.gov.pt/Base4/pt/pesquisa/?type=contratos&adjudicanteid=31323.
(2) Relatórios de Actividades e Contas 2008 (p. 70), 2009 (p. 109), 2010 (p. 111), 2011 (p. 117), 2012 (p. 146), 2013 (p. 115), 2014 (p. 131), 2015 (p. 135), 2016 (p. 159), 2017 (p. 196), 2018 (p. 196), 2019 (p. 213), 2020 (p. 188) e 2021 (p. 202).
(3) Relatório de Actividades e Contas 2020, página 14.
(4) Contrato público disponível em https://www.base.gov.pt/Base4/pt/detalhe/?type=contratos&id=6009886.